Pesquisa e catalogação dos registros sonoros do folclore

Inicialmente, a pesquisa do projeto Registros Sonoros do Folclore no Espírito Santo organizou-se em dois principais eixos: a prospecção de gravações sonoras realizadas por Guilherme Santos Neves e a reunião de materiais bibliográficos e documentais que embasariam a catalogação do acervo.

O principal objetivo da pesquisa seria a correta identificação e contextualização do material sonoro, aos quais poderiam somar-se novas descobertas feitas nesta etapa. A localização de um conjunto de fitas cassete no acervo do Laboratório de Aprendizagem da Universidade Federal do Espírito Santo (LAUFES)[1], a partir da colaboração de seu coordenador Guilherme Santos Neves Neto, acrescentou novos materiais ao escopo do projeto, que passou a compreender 59 fitas audiomagnéticas, sendo 45 fitas rolo de carretel aberto e 14 fitas cassete compactas. Já a pesquisa complementar localizou fotografias, manuscritos, artigos publicados em periódicos e outros materiais que integravam o acervo pessoal do pesquisador sob a guarda de um dos herdeiros, Reinaldo Santos Neves.

Ainda em seu depósito original, as fitas foram fotografadas para fins de registro. A análise dessas fotografias antecipou a constatação, que viria a ser confirmada durante a escuta das fitas digitalizadas, de que estávamos lidando com um material heterogêneo e precariamente identificado: as fitas são produzidas por diversos fabricantes e, em seus estojos, a maioria conta com anotações vagas, imprecisas e de difícil leitura. Ainda, parte das fitas não possui nenhum tipo de identificação e algumas aparentavam estar em estojos trocados, algo que pudemos confirmar após acessar seu conteúdo. Essa observação inicial nos apresentou a algumas das características dos registros sonoros que seriam definidoras do processo de pesquisa e catalogação.

Após serem fotografadas, as fitas audiomagnéticas foram enviadas para o estúdio Via 78, responsável por todo o processo de higienização e digitalização do material, conduzido pelo preservador audiovisual Marco Dreer, especialista em preservação digital. Assim, entre os meses de abril e maio de 2021 as fitas digitalizadas foram devolvidas em pequenos lotes à equipe responsável pelo inventário ao passo em que eram digitalizadas. Do total de fitas enviadas, dez não puderam ser digitalizadas devido ao estágio avançado de deterioração no qual se encontravam, provocado pelo armazenamento inadequado do material ao longo dos anos[2]. Ao todo, foram digitalizadas mais de 30 horas de material (cerca de 1827 minutos), das quais aproximadamente 16 horas estão disponíveis para acesso no site do projeto. O material foi selecionado para compor a biblioteca online com base em sua relação com o tema principal do projeto, o folclore, e levando em consideração questões relacionadas aos direitos autorais de determinados conteúdos. Assim, gravações não relacionadas ao folclore e/ou cujos direitos autorais e de reprodução não tenham sido esclarecidos até então não foram publicamente disponibilizadas. Ainda, para esta publicação, os conteúdos excessivamente repetidos foram suprimidos e editados de suas respectivas fitas, com o objetivo de tornar a escuta do material mais fluida e prazerosa – com este mesmo intuito, os materiais disponibilizados foram submetidos a um processo de remasterização digital, realizado pelo editor de som Arthur Navarro.

A partir da digitalização, prosseguimos com a escuta atenta do conteúdo, sua descrição e transcrição, nos casos em que esta última foi viável. Também iniciamos o processo de catalogação e preenchimento das fichas de inventário, que foram completadas à medida em que as informações eram coletadas na pesquisa. Nesse processo, nos apoiamos num extenso material bibliográfico e documental reunido em duas fontes principais: a Coletânea de Estudos e Registros do Folclore Capixaba: 1944-1982, com textos reunidos de Guilherme Santos Neves[3], e a coleção de edições originais do boletim Folclore, periódico que circulou entre os anos de 1949 e 1982. Esta última, cedida a nós pela família de Santos Neves, é um valioso material histórico, ainda não digitalizado, que contém diversas edições publicadas nos anos 50, além de alguns exemplares publicados nas décadas de 60 e 70; documenta, assim, o período áureo do movimento folclórico no Brasil e no Espírito Santo e os grandes eventos, como os congressos nacionais de folclore e as tradicionais semanas do folclore, que o marcaram. Parte importante do trabalho intelectual de Guilherme Santos Neves e de seus pares, como Hermógenes Lima Fonseca e Renato Pacheco, está registrada nos boletins.

Outras fontes bibliográficas consultadas no processo de pesquisa, como artigos de periódicos, livros, textos e documentos, foram acessadas através dos repositórios de diversos arquivos e instituições, tais como a Biblioteca Nacional e o Arquivo Nacional. Destacamos, sobretudo, a consulta à Biblioteca Amadeu Amaral e aos Acervos Digitais do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP), que possibilitou a leitura de  inúmeras matérias jornalísticas, em grande parte de autoria de Guilherme Santos Neves, e de uma vasta documentação sobre os estudos do folclore no Brasil. Também o Arquivo Público do Estado do Espírito Santo (APEES), além de proporcionar acesso ao seu acervo fotográfico, viabilizou nossa consulta às edições microfilmadas do periódico A Gazeta[4]. Os artigos pesquisados foram reunidos e analisados anteriormente à escuta do acervo sonoro; a  consulta a este material foi fundamental para a lida com os arquivos e permeou todo o processo de descrição do seu conteúdo. Nesta etapa, foi também fundamental a contribuição de alguns(as) colaboradores do projeto, que nos auxiliaram a partir da escuta atenta do material e de respostas às dúvidas levantadas pela equipe de pesquisa, incapazes de serem solucionadas exclusivamente pelo cruzamento das informações levantadas na pesquisa bibliográfica. Destacamos a colaboração de Apoena Medeiros, Didito Camillo, Eliomar Mazoco e Reinaldo Santos Neves, tendo este último nos acompanhado durante a descoberta do conteúdo das fitas gravadas pelo pai, fornecendo informações que tão somente alguém muito familiarizado com o trabalho de Guilherme Santos Neves poderia fazer.

O percurso de identificação, catalogação e contextualização

Como parte das fitas estava precariamente identificada e não continha informações precisas sobre data ou local de gravação, tampouco sobre os diversos conteúdos presentes em cada registro, foi necessário cruzar as informações trazidas pelos registros sonoros (incluindo as poucas anotações de seus estojos) e os registros textuais, as fontes bibliográficas utilizadas. Durante esse processo, notamos que grande parte das gravações, sobretudo aquelas feitas em eventos promovidos pela Comissão Espírito-santense de Folclore, festejos ou mesmo viagens a outros municípios capixabas, foi contextualizada por meio de textos publicados por Guilherme Santos Neves nas edições de Folclore e em alguns periódicos como A Gazeta e Vida Capichaba. Na série de textos intitulada “Registros da música folclórica no Espírito Santo”[5], publicada entre 22 e 27 de Novembro de 1959 em A Gazeta[6], o pesquisador faz um inventário de todas as gravações sonoras colhidas por meios mecânicos, sendo quase todas elas feitas com seu velho gravador Webster, adquirido em setembro de 1951. É possível identificar na lista, ainda que de forma pouco precisa, grande parte das gravações presentes no conteúdo digitalizado pelo projeto, como as toadas de congo da Serra (fita C46); os Bailes de Congo de Piranema ou Itacibá (fita B30) e de Conceição da Barra (fita B24); o Tangolomango (fitas A13 e B24); os romances versificados ou tradicionais Juliana e Dom Jorge e Rio Preto (fita B24); cantigas de roda como Penedo Vai, Penedo Vem e Periquito Maracanã (fita A13); a Marujada São Paulo do Morro dos Alagoanos (fitas C47 e C48); o Terno de Reis de Maruípe e o Reis-de-Boi de Conceição da Barra (fita A13).

Este inventário provisório tornou-se fundamental para nossa pesquisa, evidentemente, por trazer o mais preciso detalhamento das gravações colhidas por Guilherme Santos Neves (e pela Comissão) até o ano de 1961 com o qual tivemos contato. A partir dele, pudemos identificar um conjunto mais restrito, delimitado de gêneros, eventos e manifestações folclóricas possivelmente presentes nas fitas com as quais trabalhávamos. A inclusão das localidades em que cada registro foi colhido tornou-se muito importante para a identificação de alguns conteúdos, assim como o cuidado do pesquisador em nomear as cantigas, toadas de congo e demais conteúdos musicais, lhes atribuindo títulos ou referindo-se aos seus títulos originais. O artigo, em todo caso, não solucionou todas as dúvidas com as quais nos deparamos na identificação dos arquivos – a complexidade do tema em questão tornaria isso impossível e, mais ainda, a delimitação temporal do texto poderia apenas implicar na descrição de gravações realizadas até o ano de sua publicação e não auxiliaria a identificação de registros produzidos após 1961, como é o caso das fitas contendo a Folia de Reis, em Muqui (B34, B35 e B36) e das gravações feitas por Hermógenes em Conceição da Barra com Mestre Pedro de Aurora (B20 e D59), entre tantas outras.

Outros artigos forneceram relatos importantes sobre conteúdos presentes em fitas específicas. Em alguns casos, os textos foram definitivos para a confirmação de informações pouco precisas com as quais nos deparamos, o que levou à identificação do conteúdo e forneceu subsídios para sua contextualização. No caso da fita B30, por exemplo, a identificação do Baile de Congos de Piranema/Itacibá veio através da comparação de dois artigos publicados em edições distintas do boletim Folclore[7], os quais detalham a gravação e a filmagem deste Baile de Congo no município de Cariacica, no ano de 1953, com apoio da Comissão. Por ser este um Baile de Congo menos discutido do que o de Conceição da Barra (conhecido como Ticumbi), a existência de tais artigos foi norteadora para que interpretássemos as informações trazidas pela própria gravação que, ao trazer uma pequena introdução narrada por Guilherme Santos Neves, produzida durante a regravação do conteúdo original, informava muito brevemente o local da realização do Baile sem se aprofundar no contexto do evento.  De maneira semelhante, o folclore da Fonte Grande presente na fita B26 pôde ser corretamente identificado graças ao artigo dedicado a este tema publicado na Coletânea, que menciona a gravação realizada numa noite de Reis, na praia de Manguinhos, na qual foram registrados alguns cânticos tradicionais interpretados por um grupo sonoro sob direção de Altair Nascimento Silva[8]. Apesar de a fita trazer algumas menções à Fonte Grande, sem o acesso a este texto seria difícil precisar a natureza do conteúdo – e mesmo o tipo de cântico nele presente – além das preciosas informações de data e local da gravação.

Em outras ocasiões, mesmo a existência de alguma bibliografia sobre os temas das gravações não foi suficiente para a completa identificação de seu conteúdo. Na fita A01, por exemplo, o cruzamento de informações da gravação e da bibliografia disponível, em especial o artigo “A Festa do Divino Espírito Santo”[9], não foi suficiente para detalharmos de forma exata a data de gravação da Folia do Divino em questão, realizada no município de Viana. Se nesse caso foi a ausência de informações precisas que dificultou a correta identificação da data, no caso da fita A08, que traz a gravação de uma Festa de Iemanjá em Vila Velha, foi a existência de informações contraditórias que impossibilitou a confirmação da data de realização do registro. Ocorre que uma data diferente à mencionada na gravação é informada em artigo publicado por Guilherme Santos Neves no boletim Folclore e, posteriormente, em sua Coletânea[10] — na gravação, o ano informado é 1968, enquanto nessa bibliografia o ano assinalado é o de 1967.

Gravações da Marujada São Paulo do Morro dos Alagoanos (Vitória) estão presentes nas fitas A09, A13, B19, C47 e C48 — nessas duas últimas encontra-se a quase totalidade da Parte de Mouros do auto-popular marítimo e, nas anteriores, trechos das Embaixadas Mouras e uma versão da cantiga Barca Nova cantada na dramatização. Segundo Guilherme Santos Neves, a Comissão realizou a gravação de toda da Parte de Mouros da Marujada São Paulo no estúdio da Rádio Espírito Santo, a partir de uma parceria firmada com a instituição. Baseando-nos no relato do folclorista, é seguro afirmar que essa gravação foi feita não em fio de cobre imantado, mas diretamente em fita — precisamente um carretel e meio. Conclui-se, portanto, que o material referido por Neves corresponde ao conteúdo encontrado nas fitas C47 e C48. Não conseguimos, contudo, identificar com precisão se todos os trechos presentes nas cinco fitas aqui mencionadas, especialmente aquele que traz a gravação de uma versão da Barca Nova (B19), foram colhidos numa mesma ocasião, embora a qualidade das gravações em todos os casos aponte fortes evidências de que foram, sim, todas feitas em estúdio. Como a relação entre a Marujada São Paulo e a Comissão era de proximidade e não foi este o único encontro documentado entre ambas, não descartamos a possibilidade de que outras gravações tenham ocorrido.

No caso da Marujada São Paulo, o trabalho realizado a partir da fita foi muito influenciado pelo material volumoso produzido por Guilherme Santos Neves sobre o grupo, principalmente pelo artigo “Revisão da Marujada”[11], no qual está registrada a transcrição quase completa do auto popular. Isso nos ajudou na compreensão dos versos e na correta escrita de alguns termos, sobretudo em trechos de difícil escuta. Algumas das primeiras fitas digitalizadas possuíam trechos da Marujada em seu conteúdo e serviram de base ou ponto de partida para o trabalho que seria feito em outras fitas, ajudando a moldar o formato das fichas, influenciando o nível e a profundidade das descrições e das referências externas que seriam elencadas. Nesse sentido, o trabalho com a Marujada nos permitiu antever muitas características que seriam compartilhadas por outras manifestações folclóricas e a compreender qual seria a forma mais adequada de lidar com elas. A reprodução textual integral dos versos presentes nas manifestações orais, como veremos a seguir, foi também em parte consequência do trabalho realizado primeiramente com os registros da Marujada.

Foi natural a decisão de transcrever os versos dos folguedos e cantigas presentes nas fitas, uma vez que nos familiarizamos com essa prática de fixação dos registros orais em linguagem textual, muito empreendida pelos folcloristas, a partir da leitura do material de pesquisa. Guilherme Santos Neves, especialmente, traz em grande parte de seus textos a transcrição dos versos colhidos em todo o território capixaba e, como consta na Coletânea e na publicação Folclore, também se preocupa em preservar a melodia das cantigas através de suas partituras.  A bem dizer, a transcrição de todo o áudio é uma importante ferramenta auxiliar ao trabalho de pesquisadores(as) que baseiam suas investigações em documentos sonoros e audiovisuais; ela pode ser também útil no caso específico das fitas digitalizadas pelo projeto, que possuem muitos trechos com escuta prejudicada que levam a problemas de compreensão por parte do(a) ouvinte. Dessa forma, optamos por proceder com a transcrição completa do material sonoro sempre que fosse possível realizá-la sem comprometer  a qualidade e a veracidade da informação. Ressaltamos que em alguns casos a má qualidade da gravação dificultou nossa audição do material, impossibilitando parcialmente ou completamente a sua transcrição.

Nesse processo, tivemos dúvidas acerca da maneira ideal de representação dos versos de cada cantiga, toada ou dramatização, haja vista que a linguagem utilizada nem sempre corresponde ao que se considera a norma padrão da língua, ou atende a critérios objetivos de busca no que tange à pesquisa do material (quanto mais claras e padronizadas estejam as palavras, em tese, mais fácil seria garantir que as buscas realizadas mostrassem os resultados esperados). O debate em torno dessa questão, que passa longe do ineditismo no campo da literatura e das ciências humanas, há muito tempo circula também no ambiente dos estudos folclóricos. No artigo “Representação gráfica da linguagem folclórica”, originalmente publicado em 1951 como resultado de sua fala no I Congresso Brasileiro de Folclore, Guilherme Santos Neves comenta sobre a divergência entre os(as) folcloristas da época no que diz respeito à transcrição integral ou “retocada”, como ele mesmo define, dos registros orais da cultura popular. Clamando enfaticamente pela chegada a um consenso da parte de seus pares, o autor evidencia sua própria posição ao afirmar:

Se a pesquisa não reproduz fielmente ou com a possível exatidão a fala do informante, reduz-se-lhe o campo de estudos e, consequentemente, perderá algo e sua importância, uma vez que lhe falecerá esse outro ponderável valor folclórico — o da linguagem viva […]”[12]

A argumentação do pesquisador e professor de Língua Portuguesa não deixa dúvidas em relação à sua posição: é imperativo à colheita e à representação do material folclórico toda a fidelidade possível à fala e aos versos ditos pelo(a) informante. No que diz respeito ao material aqui produzido, partilhamos da posição de Neves e buscamos representar com a máxima integralidade a linguagem oral, em todos os casos, da maneira como ela se apresenta.

A preservação dos registros sonoros

Escreve Santos Neves, ainda no artigo “Registros da música folclórica no Espírito Santo”, que a relação de gravações por ele apresentada é necessária pois “interessa à historinha do registro musical do nosso folclore”[13]. O breve e despretensioso trecho revela uma certa vocação do folclorista para a proteção e divulgação dos resultados de suas pesquisas, ligada à necessidade, muito presente entre o núcleo de pesquisadores(as) vinculados ao movimento folclórico brasileiro das décadas de 1950 e 1960, de conectar os trabalhos individuais de cada intelectual às conquistas e avanços de seus pares, contextualizando-as entre uma gama de ações empreendidas pelos(as) folcloristas com o objetivo de provocar impactos sociais e institucionais[14] que resultariam na criação de órgãos como a Comissão Nacional de Folclore (CNFL), por exemplo. A noção de patrimônio imaterial, popularizada e institucionalizada nas últimas décadas, ecoa o pensamento dessa época,  ainda que a partir de diferentes parâmetros e elaborações teóricas. O espírito “colecionador” dos folcloristas, muitas vezes avaliado no âmbito acadêmico de maneira pejorativa[15], no trabalho de Guilherme Santos Neves apresenta-se como uma importante ferramenta de preservação da cultura popular existente no Espírito Santo.

Sua pesquisa, que desde 1944 esteve voltada ao registro (de certa maneira etnográfico) e à fixação literária/textual das manifestações e expressões folclóricas, parece ganhar novo fôlego a partir da compra do gravador Webster em 1951, que devido à sua portabilidade permite a Neves e a seus(as) parceiros(as) da Comissão estadual registrarem, agora de forma mecânica, as diversas faces dos folguedos populares, suas dramatizações e suas músicas, além de possibilitar gravações de entrevistas em pesquisas de campo.

Considerando a orientação geral dos(as) folcloristas à produção de arquivos a partir de suas práticas, podemos compreender a inserção dos registros áudio magnéticos nessa equação como um fator que intensificaria a estreita relação entre a preservação dos registros sonoros produzidos por Guilherme Santos Neves e a própria preservação da cultura popular ou do patrimônio imaterial por ele intendida. Em outras palavras, é curioso observar como a inclusão de uma ferramenta nova de produção de arquivos, que foge aos formatos textual e fotográfico, demanda também um pensamento em torno da preservação do conteúdo dessas mídias, uma vez que a perda do material produzido ou a impossibilidade de acessá-lo representaria a “destruição” de importantes registros da cultura popular, fundamentais para a continuidade dos estudos dedicados à sua proteção e preservação.

A conservação dessas mídias é essencial para o acesso a seu conteúdo. Ela exige cuidados específicos, diferentes aos empenhados na salvaguarda de documentos registrados em outros tipos de suporte, como papéis e fotografias. Soma-se a isso a necessidade de constante migração de suporte em razão da mudança nos paradigmas tecnológicos vigentes. Nesse sentido, é curioso observar que parte das fitas de rolo e cassete digitalizadas pelo projeto Acervo Guilherme Santos Neves possuem regravações de registros originalmente produzidos pelo gravador de fio de cobre. Ao que tudo indica, tais regravações teriam sido realizadas de forma manual a partir da reprodução do conteúdo em fio imantado no aparelho Webster e de sua concomitante gravação em suporte magnético em um novo aparelho, da marca Geloso. A ação realizada se deu, muito provavelmente,  em razão da necessidade de preservar as gravações a partir da migração para um suporte atualizado, facilitando assim o acesso ao seu conteúdo.

Também essa necessidade de migração do suporte dos registros feitos pelo aparelho Webster motivou Bráulio do Nascimento, então diretor do Instituto Nacional do Folclore, para que solicitasse à Library of Congress (Washington D.C., Estados Unidos da América), em setembro de 1980, a transcrição do conteúdo registrado por Guilherme Santos Neves com o velho gravador para o suporte de fita magnética. Nascimento fez esse pedido após um contato prévio realizado entre Renato Pacheco, à época presidente da Fundação Cultural do Espírito Santo, e a instituição estadunidense. Após o aceite de Joseph C. Hickerson, diretor do Archive of Folk Song, um total de 10 rolos de fio de cobre imantado foram enviados de Vitória para Washington DC, tendo sido recebidos em 15 de dezembro de 1980 como uma doação, conforme as cartas trocadas entre Guilherme Santos Neves e Hickerson informam. Na última correspondência arquivada, enviada por Neves ainda em dezembro de 1980, o capixaba afirma: “não tenho pressa, pois este material esteve inutilizável durante os últimos vinte anos”.

As fitas magnéticas, se é que foram produzidas pela Library of Congress, nunca foram recebidas pelo pesquisador ou por seus herdeiros. Em janeiro de 2021, após sugestão de Reinaldo, a equipe de pesquisadores entrou em contato com a instituição norte-americana a fim de obter mais informações sobre a coleção do folclorista depositada naquela instituição. Para nossa surpresa, o conteúdo dos rolos originais havia sido digitalizado alguns anos antes e as gravações em fio compõem a Guilherme Santos Neves collection of wire recordings from Brazil, no acervo da American Folklife Center. A partir da contribuição generosa de Todd Harvey, arquivista da instituição, obtivemos acesso às gravações digitalizadas, bem como às correspondências e documentos referentes à transação realizada em 1980. Também nos foram enviadas duas fotografias do material original depositado na American Folklife Center – únicas imagens dos rolos de fio imantado — ou “wire recordings” — encontradas por nós.

No conteúdo dos registros estão presentes raridades como a primeira irradiação, em 12 de outubro de 1950, do programa Penedo Vai, Penedo Vem, produzido pela Comissão Espírito-santense de Folclore na Rádio Espírito Santo (PRI9) e apresentado por Guilherme Santos Neves. Pelo grande volume deste material e por apresentar variações de velocidade das gravações, a coleção demanda um tratamento sonoro digital complexo, que será realizado oportunamente. Portanto, seus itens ainda não integram a biblioteca sonora do projeto — pelo menos não em sua versão “original”, já que alguns foram duplicados para fitas rolo pelo próprio pesquisador antes de serem enviadas aos EUA.

A descoberta dessa coleção preservada e digitalizada aponta caminhos interessantes para a busca de outros registros sonoros realizados a partir de meados dos anos 1950, produzidos por Santos Neves e pela Comissão. A intensa participação dos(as) folcloristas capixabas no Congressos do Folclore, bem como o intercâmbio entre pesquisadores da área de todo o Brasil, nos faz crer que existam outras cópias — ou mesmo registros originais — depositados em instituições e acervos pessoais em outros estados brasileiros. Mas, apesar de nossos esforços, não foi possível até o momento encontrá-los. Ainda, destacamos que parte dos registros audiovisuais realizados pela Comissão também neste período “áureo” de sua existência não foram até então localizados. Documentos da época atestam a realização de filmagens do Alardo e do Ticumbi, em Conceição da Barra, e da Puxada do Mastro, na Serra[16]. Há também informações sobre as filmagens de um tradicional casamento pomerano em Recreio, no município de Santa Leopoldina[17], e da representação das Pastorinhas, também em Conceição da Barra[18]. Descritos com grande empolgação pelos(as) folcloristas, esses filmes folclóricos inauguram caminhos possíveis para futuras pesquisas.

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[1] O Laboratório de Aprendizagem da Universidade Federal do Espírito Santo (LAUFES) é um órgão suplementar do Centro de Educação (CE) e tem como objetivo prestar serviços de produção e assessoria na área de vídeo e fotografia a professores e alunos da graduação e da pós-graduação, nas diversas atividades de ensino, pesquisa e extensão desenvolvidas no Centro de Educação. Para mais informações, ver: https://ce.ufes.br/laboratorio-de-aprendizagem-da-ufes-laufes

[2] Para mais informações sobre o estado de conservação das fitas e o processo de digitalização, ver o Relatório Técnico Final elaborado por Dreer e disponibilizado na seção Ensaios.

[3] A Coletânea de Estudos e Registros do Folclore Capixaba: 1944-1982, publicada pelo Centro Cultural de Estudos e Pesquisas do Espírito Santo em 2008, reúne textos escritos por Guilherme Santos Neves ao longo de quatro décadas em jornais, revistas e periódicos como A Gazeta e o boletim Folclore, citados neste texto. Dividida em dois volumes, a Coletânea foi organizada por Reinaldo Santos Neves.

[4] A maior parte da pesquisa foi realizada no primeiro semestre de 2021, quando a situação da pandemia da Covid-19 no Brasil e no Espírito Santo impôs uma série de medidas sanitárias que, naturalmente, impactaram também a rotina e o funcionamento das instituições arquivísticas. Diante desse cenário, a colaboração dos(as) funcionários(as) foi fundamental para que a investigação alcançasse seus objetivos; os(as) profissionais nos orientaram a respeito da consulta nos repositórios online e nos auxiliaram no momento em que a presença de pesquisadores(as) externos(as) nos arquivos foi impossibilitada em razão dos protocolos de distanciamento social.

[5] Uma outra versão do texto foi publicada em 1961, no volume 70-74 de Folclore, e reproduzida na Coletânea. Ver: NEVES, G. S. Puxada do Mastro em Maruípe. Coletânea de Estudos e Registros do Folclore Capixaba: 1944-1982. Vol 2. Vitória: Centro Cultural de Estudos e Pesquisas no Espírito Santo, pp. 240-248, 2008.

[6] NEVES, G. S. Registro da música folclórica no Espírito Santo. Vitória: A Gazeta, 1959.

[7] Ver: NEVES, G. S. Relatório da Comissão Espírito-santense de Folclore. Folclore, ano IV/V, n° 24/25. Vitória: Comissão Espírito Santense de Folclore, Maio-Agosto de 1953. p. 7. ; NEVES, G. S. Dez anos de atividades da Comissão Espírito-santense de Folclore. Folclore, ano VIII, n° 51/54. Vitória, Novembro-Dezembro de 1957; Janeiro-Junho de 1958. p. 15.

[8] NEVES, G. S. Folclore da Fonte Grande. Coletânea de Estudos e Registros do Folclore Capixaba: 1944-1982. Vol 2. Vitória: Centro Cultural de Estudos e Pesquisas no Espírito Santo, 2008. pp. 84-90.

[9] NEVES, G. S. A Festa do Divino Espírito Santo. Coletânea de Estudos e Registros do Folclore Capixaba: 1944-1982. Vol 2. Vitória: Centro Cultural de Estudos e Pesquisas no Espírito Santo, 2008, pp. 46-49.

[10] NEVES, G. S. Coletânea de Estudos e Registros do Folclore Capixaba: 1944-1982. Vol 2. Vitória: Centro Cultural de Estudos e Pesquisas no Espírito Santo, 2008, pp. 79-81

[11] NEVES, G. S. Revisão da Marujada. Coletânea de Estudos e Registros do Folclore Capixaba: 1944-1982. Vol 2. Vitória: Centro Cultural de Estudos e Pesquisas no Espírito Santo, 2008, pp. 150-194.

[12] NEVES, G. S. Representação gráfica da linguagem folclórica. Coletânea de Estudos e Registros do Folclore Capixaba: 1944-1982. Vol 1. Vitória: Centro Cultural de Estudos e Pesquisas no Espírito Santo, 2008, pp. 75-81.

[13] Idem.

[14] Sobre essa discussão, ver: VILHENA, L. R. Projeto e Missão: o movimento folclórico brasileiro (1947-1964). Rio de Janeiro: Funarte, 1997.

[15] ROCHA, G. Cultura popular: do folclore ao patrimônio. Mediações – Revista de Ciências Sociais, v. 14, n. 1, p. 218–236, 15 jul. 2009.

[16] NEVES, G. S. Folclore, Comissão Espírito-santense de Folclore; Vitória, Janeiro-Fevereiro de 1950. p. 3.

[17] Idem.

[18] Idem.

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Luana Cabral

Pesquisadora e realizadora, mestra em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Integrante da equipe de Pesquisa, Inventário e Catalogação do projeto Registros Sonoros do Folclore no Espírito Santo – Acervo Guilherme Santos Neves.