Gravações Orais do Folclore Capixaba

Gravações Orais do Folclore Capixaba

“Este chão é terra santa”[1]

Na pequena cidade de Vitória, com uma população que roçava 50.000 habitantes em 1949, a Rádio Espírito Santo, PRI-9, chamada Voz de Canaã, funcionava em estreitas dependências do segundo andar do Mercado da Capixaba. A denominação do mercado decorria de estar situado em trecho da atual Avenida Jerônimo Monteiro, que seguia em direção ao Clube de Regatas Saldanha da Gama.

O mercado ocupava um quarteirão inteiro, e ainda hoje lá está, embora desativado e em situação de abandono. Toda a sua área térrea se destinava ao mercado propriamente dito, sendo em boa parte abastecido por canoas que acostavam no paredão, por trás do mercado, uma vez que ainda não existia a Esplanada da Capixaba.

Era por acesso independente, dando para a Rua Arariboia, que se subia por escada de madeira e se chegava às dependências da Voz de Canaã, primeira emissora de rádio em atividade no Espírito Santo, cuja frequência difusora cobria a cidade de Vitória e alcançava o interior do Estado e até cidades vizinhas de outros estados, sobretudo Minas.

Ora, muito bem: por que iniciarmos com uma particular menção à Rádio Espírito Santo[2] este texto que trata das gravações orais do folclore capixaba? A explicação se impõe.

Ao que tudo leva a crer foi no recinto da Rádio que, por iniciativa do folclorista Guilherme Santos Neves, presidente da Subcomissão, depois Comissão Espírito-santense de Folclore[3], se fez, em fio galvanizado, a primeira gravação versificada e melódica de um folguedo folclórico capixaba, ao fixar-se, em 1949, a cantoria da Marujada São Paulo do Morro dos Alagoanos de Vitória.

A informação sobre a gravação consta na página 2 do número 3 do boletim Folclore, relativo aos meses de novembro/dezembro de 1949. Tratava-se de boletim com formato de revista voltado para publicação e divulgação de assuntos ligados ao folclore não apenas do Espírito Santo, mas também nacional e, eventualmente, internacional.

Criado e mantido por Guilherme Santos Neves, o boletim vigeu de julho de 1949 a dezembro de 1982, período coberto com a publicação de 95 números.

No antes citado nº 3, na coluna em que se acham relatadas numericamente as principais atividades da subcomissão no ano de 1949, lê-se o seguinte: “6ª: a gravação em fio de ‘toda a parte de mouros’ da Marujada – (1 hora e 40 minutos), excluídas as repetições.”[4]

Para completar essa informação, Mestre Guilherme publicou mais tarde, no nº 70/74 do boletim, relativo a janeiro/dezembro de 1961, às páginas 15/17 e 22, o estudo Registro da Música Folclórica no Espírito Santo. Nele, a partir da advertência de que o trabalho teve “o exclusivo propósito de fixar subsídios para o levantamento da história do registro musical do folclore capixaba”, formula o autor uma série de considerações sobre a importância da gravação da oralidade folclórica capixaba visando a sua preservação documental. Ao mesmo tempo, lamenta o grande vácuo ainda existente e apresenta um apanhado do que até 1948, ano da instalação da Subcomissão Espírito-santense de Folclore, fora feito por pouquíssimos pioneiros, e tão somente por meio de pautas musicais.

Mestre Guilherme conclui com farta e pormenorizada relação do que, a partir de 1948, se fez em termos de gravação do folclore capixaba, já pela então Comissão Espírito-santense de Folclore. Diz o verbete, em redação do próprio folclorista: “Temos gravação em fita (um carretel e meio) de toda a ‘Parte de mouros’ da Marujada São Paulo (do Morro dos Alagoanos, Vitória), obtida através de gentileza da Rádio Espírito Santo. (Aquisição dos carreteis pela Comissão Capixaba, e feita a gravação, nos estúdios da emissora, de todos os figurantes da Marujada)”. E prossegue a nota: “Tínhamos o propósito de divulgar, fora das fronteiras do Estado, essa riqueza do folclore capixaba. Chegamos a tirar três discos de acetato (três apenas!). Dois foram anexados ao trabalho que apresentamos sobre ‘Folguedos dramáticos no Espírito Santo’, no II Congresso Brasileiro de Folclore reunido em 1957, em Curitiba. O outro, com seis seleções da Marujada, foi ouvido em Porto Alegre, durante a realização do IV Congresso de Folclore.”

Como se depreende, a gravação levada a efeito na Rádio Espírito Santo, salvo juízo errôneo da minha parte, foi a primeira efetivada para a preservação dos versos e da melodia de uma das mais notáveis manifestações folclóricas representadas em nosso Estado.

Pelo que posso imaginar, como filho de Guilherme Santos Neves, a gravação deve ter incrementado no espírito de meu pai o empenho em adquirir um equipamento de gravação de som que lhe desse a autonomia necessária para que ele próprio pudesse promover a coleta das “riquezas” à sua disposição.

Isso me parece tanto mais verdadeiro tendo em vista que, no mesmo texto em que versou o tema Registro da Música Folclórica do Espírito Santo, no boletim de nº 61, meu pai escreveu que “no que se prende ao registro feito por meio mecânico – julgamos não haver exagero em se afirmar que tal colheita (no setor do folclore) só se fez, no Espírito Santo, através do aparelho de gravação Webster, por nós adquirido, em setembro de 1951 em filial da Mesbla S/A. De fato, quase toda a coleta musical levada a efeito pela Comissão está guardada nos carreteis de fio imantado do velho aparelho, exausto já de longo trabalho aqui em Vitória e em vários pontos do Estado.”

Da minha parte, conheci pessoalmente o gravador. Era uma maleta de mão de um vermelho escuro com cerca de 60 a 70 centímetros de comprimento, fácil de ser carregada de um lugar para outro apesar do peso relativo. Sua tampa era móvel, retirável durante as gravações, e tinha por função cobrir a plataforma com os componentes do aparelho. Alimentado por uma bateria (não recordo se recarregável por eletricidade ou troca de baterias), o gravador oferecia grande autossuficiência de gravação. Esta se processava entre dois carreteis, um removível e o outro não. Durante as gravações, o fio fluía do carretel removível para o outro, que era o polo que registrava o som. Completada a gravação, era necessário rebobinar o carretel removível para disponibilizá-lo para as audições.

É fácil aquilatar o quanto “o velho aparelho, exausto já de longo trabalho”, expandiu a inesgotável capacidade de Guilherme Santos Neves de pesquisador do folclore capixaba. De gravador em punho, junto com sua inseparável Baldina – maquininha fotográfica austríaca com que captou os mais variados lances do folclore com o dúplice olhar de artista fotográfico e documentarista atento e empolgado – vi meu pai atuar em campo com a satisfação menineira e a disposição atlética de quem fazia do coração o sexto sentido da tarefa que abraçava. E não ficava nisso.

Do arrastão de pesquisas que levava a efeito com suas gravações de campo (e aqui a expressão gravações de campo cobre o que ele via e ouvia “do povo, povo” como costumava dizer), saíram enxurradas de estudos de cunho científico-cultural sobre nosso folclore, permeados por sua ampla erudição intelectual.

E não se diga que estou fazendo afirmação sentimental por motivação filial. Basta que se tome conhecimento da batelada de manifestações folclóricas por ele gravadas a fio Webster, e tão somente de 1951 a 1961, conforme Registro da Música Folclórica do Espírito Santo, que vai a seguir indicada pelos respectivos verbetes. Vamos a ela:

Toadas de congo (em número de 27); cantigas de roda (em muitas versões); romances versificados (idem); folias de Reis; ternos de Reis: Folias do Divino (cinco cânticos, quatro de Viana e um de Marataízes); Reis de Boi (duas gravações em épocas diversas); Bailes de congo (três gravações, duas em Conceição da Barra e outra em Cariacica); Pontos de jongo e de caxambu; contos populares (parte cantada com variantes de Vitória, Nova Venécia, Rio Novo do Sul, Mimoso do Sul, Santa Leopoldina); cantigas de vários gêneros (tais como toadas da cachaça, do Tango-lo-mango, das cantigas de cego e de ninar, algumas em duas versões; e Marujada. 

A relação mostra o quanto se consolidara o método de trabalho do folclorista em suas pesquisas a partir da aquisição do gravador Webster, desdobrando-se nas seguintes etapas: gravação + fotografia + transcrição dos carreteis gravados + revelação e cópia das fotos (em geral a cargo de Hugo Musso)[5] + análise do material obtido + elaboração do texto final com as achegas do seu conhecimento erudito + divulgação do trabalho finalizado.

A divulgação, majoritariamente em textos estruturados em linguagem e estilo agradáveis, despojados de preciosismos e rebuscamentos exibicionistas, visava atingir ao público em geral, independentemente dos especialistas na matéria, conforme a seguir se exemplifica: no jornal A Gazeta, de 06.09.1959, Mestre Guilherme publicou o artigo Vamos Ver a Marujada[6], no qual escreveu: “A Marujada é um dos mais antigos e interessantes folguedos tradicionais do nosso povo. Herdado do folclore português (onde atualmente não mais se encontra), aqui [no Brasil] se fixou o brinquedo há séculos, divulgando-se principalmente no norte e nordeste, onde também se conhece pelos nomes de Barca, Chegança, Fandango. Desse auto popular de marujos constam várias partes ou episódios, que se desenrolam (quase todos) no tombadilho dum navio (real, quando as posses o permitem). Entre as principais partes destacam-se a da fortaleza, a rezinga pequena, a rezinga grande, a do piloto, a da cerração, a de mouros etc. Representadas todas essas partes, com as frequentes repetições de cânticos e marchas, uma Marujada (dizem os entendidos) dura… três dias!”

Em artigo de data anterior, publicado em A Gazeta de 13 de maio de 1959, sob o título Marujada São Paulo, o folclorista já havia chamado a atenção para o fato de ser a dramatização dos marujos um auto profundamente cristão que, como se sabe, representa um embate naval entre cristãos e mouros, os quais, vencidos pelos primeiros, acabam batizados. Aliás, o sentido cristão do auto já se explicita na saída da representação nos versos cantados da ‘marcha de entrada: “Entremos nesta nobre barca, / Nesta nobre barca, / Com muita veneração. / Louvores vinhemos dar, / Vinhemos dar, / À Virgem da Conceição.”

Já no que tange às gravações, ofereciam elas maiores dificuldades para serem compartilhadas publicamente, como é fácil de compreender. Boas ocasiões foram os encontros e os congressos de folclore e as palestras em que o gravador se fazia utilizável.

No programa “Penedo vai, Penedo vem”, iniciado por Mestre Guilherme em 12 de outubro de 1950, na Rádio Espírito Santo, e mantido por vários meses todas as quintas-feiras, às 20h, lá se fez presente e falante o gravador Webster tendo seu primeiro comparecimento se verificado no dia 28 de dezembro daquele ano.

A informação consta do boletim Folclore do mesmo mês, relativa à audição dedicada a São Benedito [observe-se a oportunidade das datas] e está posta nos seguintes termos, na parte musical do programa: “Gravação em fio Webster, em 6 toadas de congo recolhidas durante a festa da puxada do mastro na Serra: São Binidito que vem da Lisboa; Eu vim do má, eu vim; Cajueiro abalô; Boa noite, Yayá; Vamo lová, areá, e Nosso congo vai embora.

O que até aqui se expôs é um mínimo do trabalho realizado por Guilherme Santos Neves, com ou sem gravador, na sua fidalga vassalagem ao folclore capixaba. Uma vassalagem que também contemplou um lado heroico. Não se pode esquecer que, nas atividades de campo da pesquisa folclórica, a visita aos mais diferentes lugares do Estado, ainda mal servido de boas estradas, em especial nas décadas de 40 a 60 do século passado, oferecia dificuldades imprevisíveis, mormente em estradas de chão batido e em dias de chuvas fortes. Quem passou por isso e viveu a experiência sabe muito bem como era. Quem não a viveu, não faltam informações históricas que possam ser consultadas a respeito.

Na década de 80, em virtude da impossibilidade de conversão do material antigo para mídia moderna, decidiu-se depositar os rolos de gravações na Biblioteca do Congresso em Washington, classificados como Guilherme Santos Neves’ Collection of Wire Recordings from Brazil (AFC 1980).[7]

A oportuna recuperação desse precioso material, além de ser relevante preito à história do folclore do nosso Estado é também uma digna homenagem póstuma a quem, como Guilherme Santos Neves, tinha a extremada convicção de que o chão do folclore que ele afincadamente trilhou com fervor apostólico é terra santa.

[1] Verso da bela canção católica Desamarrem as Sandálias.

[2] Inicialmente uma entidade resultante da iniciativa privada, até meados de 1939, a Rádio Club do Espírito Santo ainda não havia entrado no ar apesar de terem contado os sócios fundadores com a participação da Prefeitura Municipal de Vitória e do Governo do Estado do Espírito Santo o que deu origem à Sociedade Anônima Rádio Club do Espírito Santo, PRI-9, a Voz de Canaã.  Somente inaugurada em 14 de janeiro de 1940, a PRI-9 acabou se tornando a emissora radiofônica oficial do Estado.

[3] Primeira e breve denominação do que veio a ser a Comissão Espírito-santense de Folclore, nome que já prevalecia em novembro/1950. 

[4] No site www.estaçãocapixaba.com.br, in Coletânea de Estudos e Registros do Folclore Capixaba – 1944-1982, de Guilherme Santos Neves, encontra-se a íntegra dos artigos sobre a Marujada, na sétima parte reservada às Dramatizações Populares. 

[5] O estúdio fotográfico de Musso ficava no térreo de prédio quase fronteiro à praça Costa Pereira, onde se encontra atualmente o Edifício Ouro Verde. 

[6] 6. O título do artigo publicado em A Gazeta foi um convite ao povo capixaba para assistir, dois dias depois, em 8 de setembro de 1959, no programa das festividades comemorativas do dia da cidade de Vitória, à apresentação da Marujada São Paulo do morro dos Alagoanos. O espetáculo teve duração de cerca de duas horas, presenciado por um grande público que postou em torno do tablado de madeira onde os marujos atuaram. A exibição foi resultado de enorme empenho da Comissão Espírito-santense de Folclore. Como presidente da Comissão, Guilherme Santos Neves não só assistiu a todos os ensaios da marujada sob o comando de José Pedro Lino, como se aplicou a fundo para a realização do espetáculo, A este respeito, escreveu ele: “para vestir e calçar os “marujos” – fizermos apelos a algumas casas do comércio, entre elas as Lojas Consórcio e a Sapataria Atômica, que, demonstrando alta compreensão e confiança, anteciparam (sob nossa responsabilidade) o material preciso para os uniformes e calçados do conjunto folclórico. Algumas despesas foram feitas (compras de casquetes, enfeites e fazenda para os “mouros”, feitio da roupa destes etc.) a fim de que, na noite de 8 de setembro, pudesse a Marujada São Paulo apresentar-se ali na Praça Oito, frente à compacta massa popular que não lhe regateou os seus aplausos. Entre os que assistiam à exibição encontrava-se – interessado como sempre – o ministro Renato Almeida, secretário geral da Comissão Nacional de Folclore”.

[7] Os responsáveis pelo projeto Registros Sonoros do Folclore no Espírito Santo – Acervo Guilherme Santos Neves entraram em contato com o American Folklife Center em Washington D.C. e receberam cópias digitais do material que estava sob a guarda da Biblioteca do Congresso. Esse material permanece inédito, pois ainda depende de tratamento para ser analisado, identificado e disponibilizado ao público. O acervo sonoro disponível no site é composto por um segundo lote de materiais, preservado pela família do pesquisador, em formato Fita Rolo e Fita Cassete. Grande parte do conteúdo é identificado como cópia das gravações em bobinas de fio imantado realizadas por Guilherme Santos Neves com o velho aparelho Webster durante a década de 1950. (Nota do Editor)

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Luiz Guilherme Santos Neves

Luiz Guilherme Santos Neves é escritor e historiador. Nasceu em Vitória em 1933.