B26
Cabula, folclore da Fonte Grande (Vitória, ES) e cantigas
São Mateus Espírito Santo Brasil
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B26 • Cabula, folclore da Fonte Grande (Vitória, ES) e cantigas

Lado A: Entrevista de Guilherme Santos Neves com o músico Lauro Santos, aos 33 anos, em São Mateus, sobre a Cabula e as mesas de Santa Bárbara e de Santa Maria. Ele canta vários pontos e ao final toca violão e canta sambas de sua própria autoria. O trecho tem continuação na fita B26 (lado A), na qual o música canta uma modinha composta por seu pai. Lauro Santos foi um famoso seresteiro do norte do Espírito Santo.

Lado B: Inicia com uma gravação de cânticos de Festas de Reis tradicionais da Fonte Grande, bairro de Vitória, cantados por um grupo dirigido por Altair Nascimento Silva, registrado em Manguinhos, em uma Noite de Reis (ano não especificado). Em seguida, algumas orações e versos de cunho religioso. Ainda sobre o folclore da Fonte Grande, ouvimos cantigas e rondas populares como “Dona Rosa”, “Mana Chica” “Você diz que sabe, sabe” e “As ondas do mar”. Há ainda um breve depoimento de Paulo Alfedo da Silva sobre as tradicionais rodas e cantigas do Morro da Fonte Grande. Na sequência, ouvimos várias versões da cantiga baseada no conto “A madrasta”, colhidas em diferentes localidades do Espírito Santo e de Minas Gerais. Em seguida, mais algumas cantigas, uma versão do “Tangolomango” e uma versão da Barca Nova cantada na dramatização da Marujada São Paulo, no início da Parte de Mouros; essa versão provavelmente foi colhida em 1949. Ao final, versão do lundu “Gostei do negro”, cuja linguagem pejorativa e depreciativa utilizada para referir-se ao sujeito negro baseia-se, segundo a pesquisadora Martha Abreu (2004), nos estereótipos advindos do pretenso ideal de civilização que marca o pensamento brasileiro entre o final do século XIX e o início do século XX (ver: referências externas). Optamos por manter aqui a canção devido à sua importância histórica no contexto brasileiro, especialmente sudestino, partindo de uma análise voltada às relações entre raça e gênero no Brasil durante e pós-abolição, bem como à forte presença desta e de outras canções lundu no trabalho de folcloristas brasileiros, como o próprio Mário de Andrade.

Conteúdo detalhado

LADO A

[00:00:01.00]
> Orador 1: Eu ia, eu não vou nesses lugares…

> Guilherme Santos Neves: Alô, alô.
Como é seu nome todo?

> Orador 1: Eu posso falar…?
Lauro Santos.

> GSN: Quantos anos tem hoje?

> LS: 33.

> GSN: 33 anos. Nasceu aqui?

> LS: Nasci aqui mesmo.

> GSN: Aqui no Sernamby? Não, aqui em São Mateus?

> LS: Não. Aqui em São Mateus, no município de São Mateus.

> GSN: Em que lugar, mais ou menos? No interior?

> LS: 47.

> GSN: Quilômetro 47. E lá havia Cabula?

> LS: Algumas.

> GSN: E como é que você aprendeu esses pontos?

> LS: Porque sempre eu morava nesses lugares e mesmo a pessoa passando via, né? Parava, ficava ali um instante e gravava aquelas coisas. E mesmo quando eu era mais novo, com 15 anos até 18, eu na farra dos outros ia, sabe? Chegava… é, aprendia, via tudo que passava por lá e chegava em casa eu fazia do mesmo jeito, cantava…

> GSN: Onde é que se fazia a Cabula?

> LS: Num lugar denominado Córrego de Pedra, Córrego Grande.

> GSN: Era em terreiro, era em casa?

> LS: Em terreiros. Choupanas de palhas com terreiro próprio pra isso, né.

> GSN: Não era na mata?

> LS: Uma, a Mesa de Santa Bárbara, era no terreiro. Agora, já tinha outras Mesas que eram nos matos, no terreiro lá dentro das matas, né.

> GSN: Desta você sabe algum?

> LS: Lá de dentro da mata eu não sei porque eu tenho medo daquilo, é uma coisa de noite, meia-noite, eu não ia. Agora, já a do terreiro eu passava, eu assistia, né. Gravava muita coisa dali.

> GSN: Por exemplo? Vamos ouvir alguma coisa que você tivesse gravado lá…

> LS: Lá nesse terreiro… bom, pode ser gravado um ponto, por exemplo…

[00:02:24.24]
> Lauro Santos. Ponto de Cabula. Santa Bárbara tá cansada / ô de tanto fazer milagre / mas o filho dela não pagou / trabalho que mamãe faz

[00:02:48.23]
> GSN: Continua cantando, né?

> LS: Continua cantando.

> GSN: E quando se canta isso o que que a turma faz?

> LS: A turma aí se rufa num tambor e cai dentro, chega a suspender poeira pra tudo quanto é canto. Brincam mesmo, caem no chão. Tem um chefe… depois passa qualquer uma mão assim por cima, um sinal… Um hipnotismo, né? O Tito é um cabôclo da barba rala, que até o nome dele chama Zé Avaristo. Ele é fogo nesse negócio.

> GSN: Conhece um outro ponto?

> LS: Conheço, sim. Tem outro ponto que diz assim:

[00:03:34.29]
> Lauro Santos. Ponto. Ôi, se tem fé vem brincar / Ôi, se não tem vem espiar

[00:03:56.21]
> GSN: E conhece mais outro ponto?

> LS: Mais, tenho diversos ainda. Mais outros pontos. Talvez até mais bonitos, tanto como esse aqui:

[00:04:08.13]
> Lauro Santos. Ponto. Por que que você num veio onte / naquele dia tão fino / quando vê raio do sol / só parece Deus menino

> LS: Pode ter mais outro, por exemplo…

[00:04:27.25]
> Lauro Santos. Ponto. Ôi tem omim / tem abadô / Ôi pra quem fala / do meu canjerô

> Pode ter esse aqui também, um grande ponto bonito, por exemplo este:

[00:04:44.18]
> Lauro Santos. Ponto. Ogum, eu sou vaqueiro da minha boiada / ogum é vaqueiro das encruzilhada / saravá é quem diz / o quê, saravá é quem diz

> GSN: Esse realmente é muito bonito.
[…]
Então, Lauro, vamos mais a um ponto.

[00:05:08.25]
> Lauro Santos. Ponto. Eu pisei na ponte / a ponte tremeu / debaixo da ponte / calunga gemeu

> LS: Quer dizer que aqui é um que tem mais ainda…

[00:05:28.28]
> Lauro Santos. Ponto. Ôi no campo de salomão se me chamar eu vou / Ai no campo de salomão um ramo verde balançou

> GSN: O que é um campo de salomão?

> LS: Campo de Salomão é de um tal que faz parte… porque eles antes de iniciar o trabalho faz um cinco-salomão no meio do terreiro. Um cinco-salomão. Ele é espécie um triângulo, um negócio, um ângulo assim. Cinco-salomão. Agora no meio daquele cinco-salomão fica uma forma de estrela, agora fica aquele terreiro ali onde que eles tiram um ponto, dá certo, ficam ali dentro daquele ponto.

> GSN: E qual é a dimensão..?

> LS: A dimensão pode ser um… é bem grande, é quase do tamanho do terreiro.

> GSN: Desenhado?

> LS: Desenhado. No chão.

> GSN: E sobre ele…

> LS: Sobre ele dançam e cantam, é ali que trata o Campo de Salomão.

> GSN: Sabe mais algum…

> LS: Sei mais um outros também.

[00:06:59.03]
> Lauro Santos. Ponto. Hoje Angola vem / Angola vai / Meu Jesus Cristo também

> LS: Aqui também é um ponto. E tem mais:

[00:07:16.29]
> Lauro Santos. Ponto. O rosário de Maria / de pesado está tremendo / os anjo lá do céu / que por ele vêm descendo

> LS: Tem mais outro bonitinho aqui também.

[00:07:34.20]
> Lauro Santos. Ponto. Ô soberana luz divina / Que pra nós nunca faltou / Eu vi a voz da senhora, meu anjo / Debaixo do resplendor

> GSN: Muito bonito, muito bonito. Mas cantado lá pelo grupo todo?

> LS: Pelo grupo todo, em conjunto. Homens, mulheres, crianças etc. Todo mundo, não escapa ninguém. Quem não cai dentro do negócio o chefe se aborrece, ou vem embora ou ganha um castigo, dá lá qualquer coisa lá, o sujeito cai no chão… não tem esse negócio não, é…

> GSN: Você falou em tambor.

> LS: Tambor. O tambor são dois tambor, um chama Luano, o grande; E o pequenininho chama Luana, quer dizer que é o casal – é Luano e Luana, os dois tambores. E tem os batedor próprio, profissional… bate com a mão, tanto quanto um [jongo].

> GSN: Não é trepado não?

> LS: Não, é senta, sentado em cima do tambor. Agora, ali depois do tambor tem mais outro instrumento do tipo a cara de uma pessoa que se trata um reco-reco, feito por eles mesmos de madeira. É uma peça de madeira, um metro mais ou menos de tamanho, uma parte… outra lisa, lisa não, feito chato e cheia de dente aí rapam com a paleta aquele negócio pra dar o som.

> GSN: Mas você disse que com uma cabeça?

> LS: É, aí viu a forma dele numa ponta dele e faz a forma dele da cabeça d’uma pessoa. É zólho, boca, nariz…

> GSN: Chama-se reco-reco?

> LS: Reco-reco, põe até cabelo mesmo de pessoa, com cera, eles pregam ali fica tipo a cara de uma pessoa, d’um bicho…

> GSN: Você nunca viu chamar esse aparelho de Casaco? Canzaco?

> LS: Não, não. Canzaco é outro, é um que balança de um tal chocalho que tem uma lata. Esse aí é raspado. Raspa, faz o som raspando ali.

> GSN: Como um reco-reco?

> LS: É. Reco-reco.

> GSN: Muito bem.

[00:10:21.20]
> GSN: A estrela grande, cinco-salomão, como você disse, é riscada no chão. Dentro dela a turma dança, etc. Mas você disse que não pode pisar nas pontas? Por que?

> LS: Na ponta… é proibido.

> GSN: E a cachaça?

> LS: A cachaça… tem a cachaça e cada um que já tem uma mediazinha própria, pequena, toma pulando mesmo, sem fazer parada nenhuma. O mestre vem de lá e cá na boca de cada um, toma – até mesmo criança de treze ano, catorze ano, toma. Mas é pouco, é um didal. O nome da cachaça lá eles mudam, é Marambaia o nome da cachaça, se trata Marambaia.

> GSN: E na Cabula tem cachaça?

> LS: Na Cabula tem também.

> GSN: O que é cabula? Existe ainda a Cabula por aqui?

> LS: Bom, agora acabou. Existia do tempo daqueles povo mais velho, que já morreram, 90, 100 anos, né. Aqui já acabou. Quando…

> GSN: Mas não existe lá, por exemplo, em Linhares, uma localidade de Conceição da Barra? Você não ouviu falar que existe lá em cima?

> LS: Bom, na Barra já ouvi falar. Agora, já não sei muito…

> GSN: Aqui em São Mateus, não?

> LS: Não, não. Aqui não existe não, cabou. Agora o que existe é essa mesa de Santa Bárbara, é espiritismo, Jango. Essas coisas existe muitos ainda, é sério. Pra todo canto aí pra cima o camarada vai e topa uma Mesa na beira da estrada.

> GSN: Isso se realiza em que dias e que horas?

> LS: Realiza… o começo, oito horas, sete horas da noite. Só os sábados e as sextas… sexta-feira e sábado. Domingo, segunda, terça, quarta, quinta, não, não tem. É sexta e sábado. De sexta pra sábado, quer dizer que começa sexta-feira às sete horas, termina sábado meio-dia, nove horas…

> GSN: Tudo isso?

> LS: Tudo isso, ainda tem uma parada lá pras oito horas, mata um cabrito que eles botam… essa festa do cabrito eles tratam Devoção do Carneiro, todo mundo tem que pular com a cabeça do carneiro com a palma da mão, um dá uma volta com ela, entrega a outro, tem que passar a todo mundo…

> GSN: Cantando?

> LS: Cantando.

> GSN: E sabe…?

> LS: Não, cantando outro qualquer ponto mas com a cabeça de carneiro. Se trata Devoção do Carneiro, né.

> GSN: E sai ensanguentando? Ou tira o sangue?

> LS: Não, tiram todo o sangue. Quer dizer que aquela cabeça é lavada, é fresca sim, mas é lavada bem que não suja ninguém de sangue, que o pessoal também vai pra ali rasgado ou sujo, eles não aceitam não, tem que ir tudo de roupa branca, todos de roupa branca, descalços. Que é num lugar de terreiro, cheio de poeira, não pode nem…

> GSN: E há velas?

> LS: As velas… é velas mesmo dessas que é comum, assim, e no mais eles usam muito vela de cera feita por eles mesmos, cera de abelha, né, velas grandes e grosas.

> GSN: Acendem?

> LS: Acende. Acende mesmo. Dura muito, a noite toda. Um vela que eles fazem tem mais de dois metros, tem vezes que…

> GSN: Onde ficam as velas?

> LS: As velas ficam num altar Mesa da Santa Bárbara, porque o altar da Santa é feito por eles mesmos, um tipo de uma parede grossa de barro, do batimga, da largura de um balcão mais ou menos. Agora, dentro daquele barro, por cima, por fora, por dentro, tem aquelas pedras pretinhas que é aquelas que eles chamam Pedra de Santa Bárbara mesmo. Elas minam água, soam; tempo calor então chega a pingar aquela água. É aquela que é a Santa Bárbara mesmo aquela, são pretinhas, né. E depois dessas pedras tem outros santos, muitos santos. Tem o Abador, tem o Babalô, tem o Ogum. Ogum é um santo que tem um metro e pouco de altura, comparando. Tem a Santa Bárbara mesmo, sem ser a pedra, tem ela, assim. E tem mais muitos santos, é muitos santos mesmo. É santos que nada nada tem número de uns duzentos e tantos santos. Que o altar fica de canto a canto cheio mesmo de santos.

> GSN: São Jorge?

> LS: Tem! São Jorge, Santo Antônio…

> GSN: Que nome tem São Jorge?

> LS: São Jorge é São Jorge mesmo. É, São Jorge. Até que tem o ponto de São Jorge.

> GSN: Você conhece?

> LS: Conheço.

> GSN: Vamos ver.

[00:15:08.17]
> Lauro Santos. Ponto. A espada de Jorge / Foi Deus que mandou / Jorge passa a mão na espada / Jorge é vencedor

> LS: Outro ponto, quando o camarada chega, às vezes que fala mal da Mesa, eles tiram o ponto aqui:

[00:15:42.00]
> Lauro Santos. Ponto. Você sabe que não tem fé / Pra que que veio fazer cá / Falando da minha Mesa / E falando do nosso Pai

> LS: Porque o Pai é a Santa Bárbara, que eles tratam nosso pai, meu pai. A Santa, né, que é a mestre da Mesa, a dona. Quer dizer, falando no nosso pai” é a santa. ”

> GSN: E a água?

> LS: A água? A água que eles usam beber é uma água que mesmo assim dúma cacimba. Agora, fica diversas dessas pedras que foi falada antes, que chama Santa Bárbara, dentro daquela água. Todo mundo bebe daquela água. E até também tem números de cobra enroladas embaixo das cortinas da mesa. Agora, ali, tem também a brincadeira das cobras. A brincadeira das cobras eles cantam lá um ponto e elas todas saem também no meio das pessoas mas não mordem não. Não tem medo. Agora se pisar em cima, fazer crítica ela morde mesmo pra valer. É cobra mesmo, salamanta, jibóia, surucucu, jaracuçu… qualquer cobra tem ali enrolada, já mora ali. Quer dizer que ele tem trato daquelas cobra que vivem ali mesmo embaixo do altar, qualquer coisa…

> GSN: E há um ponto?

> LS: Há, aí pode ser… tem um ponto pras cobras, que ela quer dançar. Por exemplo, tem esse ponto assim das cobras:

[00:17:36.07]
> Lauro Santos. Ponto. Ô Encruza, encruza, encruzadinha / A barba de ramo é minha madrinha

> LS: Quer dizer que esse ponto é das cobra. Ramo. Agora, é o ponto das cobra. E tem diversos outros pontos, né, pra pessoas, pra os santos. Tem muitos pontos. Eles cantam a noite toda sem repetir um. Noite e dia sem repetir um ponto que já cantou, todo é… não tem esse aqui… tem um ponto quando o dia vem amanhecendo, que vai vendo a barra clareando. É esse aqui:

[00:18:21.06]
> Lauro Santos. Ponto. Ô clareia / o dia / Clareia / A luz de Bom Jesus

> LS: Esse aí é o ponto quando o dia vem rompendo, né, que vem clareando eles tiram esse ponto. Todo mundo canta, pula.

> GSN: Há um ponto da abertura, Lauro?

> LS: Há um ponto da abertura. Antes de iniciar a mesa, canta um ponto todo mundo, um ponto até muito piedoso, até tem muita gente que chora na hora de canntar ele. E tem o ponto também de requerer o que vem, pro povo receber o santo. O povo recebe é o santo, cada um santo daquele tem uma pessoa pra ele, né. Um exemplo, tem esse ponto de abertura, né. Diz assim:

[00:19:17.02]
> Lauro Santos. Ponto. Senhora Santana / Mãe de Deus amado / Ela e a filha dela / Maria chamada / Mãe de Deus amado / Me livras do inferno / Para sempre, amém

> LS: Quer dizer que aí é o ponto de abertura. Só que depois do ponto de abertura chega o ponto pra cada qual requerer seu santo. Eles diz assim:

[00:20:00.02]
> Lauro Santos. Ponto. Eu mandei pedir a Deus meu Jesus Cristo meu São Salvador / Que descesse dos céus à terra os santos comunicador / Os santos comunicador mas se eu lhe chamo você pode chegar / Mas com uma licença divina / Ai vocês pode comunicar

> LS: Quer dizer que é repetido muitas vezes esse ponto, né? Ai torna a repetir duas, dez, quinze vezes, conforme queira, esse ponto; quer dizer, aí desce mesmo e todo mundo cai, essa hora aí cada um recebe o seu. Quer dizer que cai, pega um… cada um que cai tem que ir lá pro altar, de lá o chefe pega ele, traz perto do tambor. Esses mesmos tiram um ponto, cada um deles tem que tirar um ponto. É assim. E eles quem tiram, tiram o ponto. Eles… volta, vai desmaiado pra lá, mas depois quando tira o ponto já sai de perto do tambor dançando no meio dos outro, depois sai. Homens e mulher. Depois eles mesmos ficam bons, continua dançando até o dia amanhecer e vai toda vida.

> GSN: Você diz que há Mesas que fazem mal e outras que…?

> LS: Não faz mal. Por exemplo, a Mesa Santa Maria que faz mal, desenha o indivíduo no meio do chão, no meio do terreiro, no campo de salamão. Agora, ali, tanto o povo pula por cima e tem os punhais que bate, cada hora que tira um e bate o punhal ali em cima do retrato do camarada feito ali pro mal deles. Quer dizer, cada uma punhalada que um der ali em cima que um está pulando, é uma dor, uma pontada pontada que ele sofre onde estiver, na casa dele, em outro estado, né, ele ali cada vez que o punhal bate ele lá dá um grito. Essa é a Mesa de Santa Maria que é assim. Já essa outra que é a Mesa de Santa Bárbara não, só faz o bem. Por exemplo, cura feridas, cura outras doenças, dores; esse povo que cai toda hora, tem vezes que cura, que anda caindo, aquelas doenças que dá aquelas coisa, cair, rolar pelo chão, cura, né; cura de ventre caído, o chefe benze de tudo isso, ventre caído; más olhos…

> GSN: E em Santa Maria, qual é o santo que é invocado?

> LS: Invocada é Santa Bárbara. Santa Maria não tem um santo não, Santa Maria é uma Mesa no meio da mata e lá é um negócio lá, tal de Nagô… Nagô, essas coisas lá. Pai de terreiro… aquilo é um troço até feio, né? Camarada sai correndo tarde da noite por dentro das mata, sobre no irizê de espinho, já ouviu falar? Que tenho espinho pra danar, né… sobe ali de costas, desce de frente, todo jeito. Vem de lá e… quando vem lá vem todo amarrado, torna a voltar à Mesa, todo mundo se bate e não desamarra ele; ele volta amarrado, volta amarrado pra lá aonde amarraram ele, depois ele já vem desamarrado. Quer dizer que esse é um negócio esquisito, né, é uma coisa… não tem esse negócio de cair, nada não. É só assim, pula… e eles samba, nessa Mesa de Santa Maria, nessa outra Mesa, é batendo palma, compreendeu, né? Não, não tem tambor e nem cantoria, é só palma, ali é palma. Palma e falando aquelas palavras, e não sei o que. Modo uma troca-dança, um negócio, né. É só assim. É na mata, e se cantar todo mundo vê. E aquilo é perseguido pela justiça, pela polícia, né? Por isso que eles faz quietinho, só na palma – meia-noite, quando todo mundo está dormindo. Mas é mole não, é um véi feio heim.

> GSN: Você já viu?

> LS: Já vi, mas saí de lá correndo, nunca mais fui. Aquele eu tive medo.

[00:24:24.00]
> GSN: Mas, ô Lauro, mudando de pau pra cavaco. Eu soube que você já compôs um samba, sabe cantar… está aí com um violão ao peito. Quer contar essa história?

> LS: Posso contar. Em 1949, eu estive preso um ano e seis meses. Entonces, na cadeia não tinha o que fazer, meu sofrimento foi horrível, né. Eu gravei mais ou menos um samba. E nessa cadeia, a mulher, a senhôra do doutor juiz de direito José Mossefi nos deu – eram seis presos – uma muda de roupa, ela mesma fez, coitada, mandou fazer lá e deu a nós de presente calça e camisa, uma mesclazinha, calca e camisa do mesmo jeito. Entonce, na minha… os outro não, mas na minha muda de roupa eu botei o nome como macaca, a minha eu botei o nome macaca e… essa muda de roupa durou muito, inté quando me deram o alvará de soltura eu ainda possuía ela, que eu tinha vestido. E fui lavar num córrego aqui no Ribeirão, aqui mesmo em São Mateus, pertinho aí, né. Chegou lá, enquanto eu tirei ela pra lavar, com medo, assustado, num recanto mais pra cima perto de uma piscina de Lourival Pinha, e escondi, deixei ela num lugar que o sol batia pra enxugar e escondi numa moita. E eu já tava fraco de cadeia, o sono me pegou, dormi, né. Quando acordei que lembrei, cadê? Tinha chegado lá, passaram a mão na muda de roupa. Agora, eu não sei se carregaram ou se jogaram fora. Aí logo eu saí de lá do mato, como diz o outro, dos trajes de Adão, né. Aí chegou a polícia, né, não contou com nada, me prendeu novamente. Aí eu pra não vir diretamente despido pra cadeia, me arranjaram um vestido de mulher lá no Ribeirão, me enrolaram vestido de mulher que eu pude chegar até no xadrez, mas chegou cá eu livrei bem, que eles soube… contei a situação, eles acreditaram, quer dizer que só levei duas horas depois mas saí, graças a Deus, e tô bem hoje, né? Que o samba é esse aqui. Entonce, por esse mesmo sofrimento eu tirei o samba, né?

[00:26:55.06]
> Lauro Santos. Samba. O peso é meu, eu estou muito pesado / Só me parece que eu estou enfeitiçado / Esse tempo é ruim, o que já estava chegando agora / Se eu estava na cadeia, me puseram fora

[00:28:08.02]
> LS: Agora é uma valsa. Quando eu tinha 12 anos de idade, eu morei numa cachoeira no Rio do Norte, aqui pra cima do Presidente, Pedra do Norte, esses lugares, um lugar que chamava Cachoeira da Lapa e muita gente chamava Cachoeira da Laje. Entonce, olhando a cachoeira bonita, baixa, no meio da mata, entonce eu tirei mais ou menos. A música? Não. Mas a letra quase foi eu que dediquei, por exemplo. Diz assim:

[00:28:44.08]
> Lauro Santos. Valsa. Veja que grande injustiça / Fez o tenente coronel / Que enrolou o prisioneiro / Numa folha de papel… Qual será o infeliz que queira ser preso pra toda a vida?

> LS: O meu pai quando morreu eu fiquei com idade de 12 anos. Não conheci bem. Otacílio dos Santos. Entonce, ficou minha mãe com seis filhos. Morreram três, ficamos em três. Ficou eu, que sou o Lauro Santos, ficou o Pedro dos Santos e o Manuel dos Santos, são mais novos do que eu. Eu que trabalhava, era o mais velho, com 12 anos, os outros eram mais novo,c om 5, 6 anos, eu quem trabalhava no cabo da enxada e ganhava-se 500 réis por dia pra sustentar todos eles. E minha mãe na tauba, coitada, de roupa, lavando roupa pra fora. E onde que meu pai era um baiano e era um bom violonista. Agora, ele deixou também muitas mudinhas gravadas que eu não aprendi com ele porque eu era pequeno, mas a minha mãe aprendeu e canta, depois de muito tempo cantava. Pra mim, eu vendo aquilo pergunto: mamãe, de quem é essa mudinha? Ela é do seu pai, que você não conheceu. Entonce eu gravei muitas, que uma delas é essa daqui:

[00:32:09.06]
> LS. Mudinha. Já são hora da triste partida / eu só queria que ocê fosse o meu… / para me dar o t’aperto de mão / Ô ingrata, tenha dó…
[gravação interrompida]

FIM DO LADO A

INÍCIO DO LADO B

[00:00:02.21]
> Reis (versos). Fonte Grande.
Na cidade de Belém
Para vida dar ao rei
Que é tempo, que é tempo destinado

Em Belém cantou o galo
Ó meu Deus, o que seria?
Viemos trazer a nova:
É nascido Jesus filho de Maria

São José fou buscar lume
Para lumiar Maria
Quando São José chegou
O menino, o menino Deus nascia

Acordais que estais dormindo(…)


[00:02:18.03]

> Reis (Entrada). Fonte Grande.

Meu senhor dono da casa
Galho de manjericão (2x)
Venha a todos receber
Com toda a satisfação (2x)

Venha a tua porta abrir
Para entrar a folia (2x)
Que nos vem cantar o Reis
Nesta noite de alegria (2x)

[00:03:10.24]
> Reis. Pastorinhas (Canto de Despedida). Fonte Grande.

Pastorinhas, vamos
Vamo-nos embora (2x)
Que o dia vem,
Vem rompendo a aurora (2x)

Ô cigana, vamos
Vamo-nos embora (2x)
Que o dia vem,
Vem rompendo a aurora (2x)

Boa noite a todos,
Vamo-nos embora (2x)
Que o dia vem,
Vem rompendo a aurora (2x)

Que o dia vem,
Vem rompendo a aurora (3x)

[00:05:09.23]
> Oração. (Mártir de Cristo São Sebastião)

Mártir de Cristo
Meu Santo Varão
Nos livrai da peste
Meu Santo Sebastião (2x)

Dentre de vós criança
Que vós entravaste
No peito de cristo
Que vós tanto amaste (2x)

Soldado fiel,
guerreiro valente
Tocador das graças
Do onipotente (2x)

Foste prisioneiro
Fostes amarrado
Em uma laranjeira
Sem…

“Morro na fé!”,
Exclamaste assim
Eu morro por Jesus
Que jesus morreu por mim

[00:07:47.05]
> Barra do Dia.
Evém a barra do dia
Evém com a Ave Maria
Leva contigo o finado
Um anjo pra sua guia

[00:09:16.26]
> Rosário de Maria.
Se Deus não viesse ao mundo
De nós o que seria
Lá no céu tem um farol
Em pino dá meio-dia
No meio abriu uma rosa
do Rosário de Maria
Sou um pobre navegantes
navego no mar sem guia
Achei o porto seguro
do Rosário de Maria

[00:11:39.22]
> Cantiga/oração. Rainha dos Anjos
(…)
Rainha dos anjos
do céu resplandor (2x)

[00:16:09.01]
> Roda (Folclore da Fonte Grande). Dona Rosa.
Vou embora pra Bahia,
vou fazer canaviá
Se o café não dar dinheiro, Dona Rosa,
eu vou ver se a cana dá.

[00:17:22.16]
> Cantiga. (Folclore da Fonte Grande). Mana Chica.
Ó Mana Chica
Minha folha de café (2x)
Vou casar com Mana Chica
Faça gosto quem quiser (2x)

Você me mandou cantar
pensando que eu não sabia (2x)
Eu não sou como a cigarra
que pra cantar leva um dia (2x)

[00:18:46.27]
> Cantiga (Folclore Infantil; Folclore da Fonte Grande). Você diz que sabe, sabe.

Você diz que sabe, sabe
Mas não sabe soletrar
Quero que você me diga, amor
Quantos peixes tem no mar
Ali em cima daquele morro
Tem um lencinho voando
Não é lenço, não é nada, amor
É meu bem que está penando

[00:19:33.20]
> Paulo Silva: Então, às seis horas já toda a meninada já tinha tomado banho, tinha jantado, estavam todos ali prontos para a roda. Agora, não era uma roda só não. Cada núcleo tinha sua rodinha, então você ficava de cá ouvindo na parte de cá, na parte mais alta, você ouvia, né, começava aquela rodinha pequena, primeiro em surdina, depois aquilo ia aumentando. E coincidia às vezes com a noite de luar. Então, quando a lua cheia vinha clareando, tinha muita vegetação, aquelas folhas brilhando… então aquilo… via a silhueta das crianças na roda, e eles cantavam esses versos. Mas era um espetáculo. Você ficava embevecido, parado, assim… todo atento, só ouvindo aquela música. E os versos bonitos. Tem aqueles versos no morro da Fonte Grande, tem subida e tem descida, não sei se você conhece. É uma coisa admirável. Não sei como se tem imaginação, não é isso, pra fazer um verso daquele.

GSN: Ali foi centro de folclore.
Trecho com velocidade distorcida.

> PS: Foi. Eu considero a Fonte Grande um relicário. Ali tem de tudo. Ainda tem de tudo, apesar do carnaval, do rádio etc, mas ainda há muita coisa antiga que o sujeito pode colher ali.

[00:21:03.18]
> Ronda. (Folclore da Fonte Grande). As Ondas do Mar.

As ondas do mar lá fora
são alvas como papel
Um amor que já foi falso
não pode ser mais fiel

Esta casa está bem feita
por dentro, pro fora não;
por dentro, cravos e rosas,
por fora, manjericão…

[00:22:02.25]
> Conto/cantiga popular A Madrasta. Diversas versões.

> Conto/cantiga popular. Colatina. Pelo figo da figueira (A madrasta)

> Conto/cantiga popular Maria Aparecida dos Santos, Mimoso do Sul. Capineiro do meu pai (A madrasta)

> Conto/cantiga popular. Angela Pitol, Santa Leopoldina. Jardineiro de meu pai (A madrasta)

> Conto/cantiga popular. Maria Barros, Espera Feliz, Minas Gerais. Carpinteiro de minha hora (A madrasta)

[00:23:43.13]
> Cantiga. De manhã cedo a cana está madura…

[00:24:26.25]
> Conto/cantiga popular A Madrasta (Margarida dos Santos Daher, Nova Venécia)

[00:24:45.14]
> Conto/cantiga popular A Madrasta. Outra versão.

[00:25:20.25]
> Cantiga. Toc-to-toc / quem bate aí / sou eu o ceguinho / que canta a pedir

[00:26:25.21]
> Versão do Tangolomango.

[00:27:22.23]
> Canção. Ó meu benzinho / eu te amo com firmeza / tu me despreza sem razão / eu te chamo, venha cá, não vou…

[00:28:12.29]
> Barca Nova. Versão da Marujada a capella.
Na saída de Lisboa
Quando eu fui puxar os ferro
Lembrei-me das menina
dos meus amores lá de terra
24 de Dezembro
Meia-noite deu sinal
Rompe aurora, primavera
Viva à noite de natal

[00:31:12.19]
> Cantiga/Lundu. “Conheci um nego” (Gostei do nego foi mesmo assim)

FIM

Destaques do Lado A

Entrevista com Lauro Santos sobre a Cabula.
Lauro Santos. Pontos.

Destaques do Lado B

Folclore da Fonte Grande. Reis.
Orações, incluindo Rosário de Maria.
Folclore da Fonte Grande. Rondas e cantigas infantis.
Contos e cantigas populares.
Barca Nova. Versão da Marujada a capella.

Ficha técnica

Código de referência

GSN_FR_B26

Título (atribuído)

Cabula, folclore da Fonte Grande (Vitória, ES) e cantigas

Data de gravação

Não especificada

Local de gravação

São Mateus, ES, Brasil
Manguinhos, Serra - ES, Brasil

Suporte de gravação

Fita Rolo

Idioma

Português

Gênero

Entrevista, Registro Documental

Data da digitalização

20/05/2021

Informações no estojo

Lauro Santos – São Mateus. 12.RF

Marca e modelo

Fita BASF. Estojo Philips.

Personagens

Guilherme Santos Neves; Lauro Santos; Paulo Silva; Altair Nascimento da Silva; Maria Aparecida dos Santos; Angela Pitol; Maria Barros; Margarida dos Santos Daher

Referências externas

Sobre a Cabula, ver:
NERY, D. João. A Cabula. Folclore, n° 13-15. Vitória: Comissão Espírito-santense de Folclore. Julho a Dezembro de 1951.

Sobre o folclore da Fonte Grande, ver:
NEVES, Guilherme Santos. Folclore da Fonte Grande. Coletânea de Estudos e Registros do Folclore Capixaba: 1944-1982. Vol 2. Vitória: Centro Cultural de Estudos e Pesquisas no Espírito Santo, 2008. pp. 84-90.

Sobre a Dança Mana Chica, ver:
NEVES, Guilherme Santos. Coletânea de Estudos e Registros do Folclore Capixaba: 1944-1982. Vol 2. Vitória: Centro Cultural de Estudos e Pesquisas no Espírito Santo, 2008. pp. 235-240.

Sobre Tangolomango, ver:
NEVES, Guilherme Santos. Coletânea de Estudos e Registros do Folclore Capixaba: 1944-1982. Vol 1. Vitória: Centro Cultural de Estudos e Pesquisas no Espírito Santo, 2008, pp. 163-183.

A Barca Nova é uma cantiga oriunda do romance português, presente no folclore brasileiro em diversas versões, como na famosa cantiga de roda que leva este mesmo nome. Ainda, está presente na Parte de Mouros do auto popular conhecido no Espírito Santo como Marujada. A versão presente nesta fita se refere àquela cantada pela Marujada São Paulo do Morro dos Alagoanos (Vitória). Afirma Neves (1949) que, apesar de ter versos semelhantes à cantiga de rosa e à Marujada mateense, esta versão possui música completamente distinta das outras. ver:
NEVES, Guilherme Santos. Presença Açoriana no Folclore Capixaba. Folclore, n° 92. Vitória: Comissão Espírito-santense de Folclore. Agosto de 1979.
_____________________ . Barca Nova. Vida Capichaba. Vitória, 09 de Setembro de 1949.

Sobre o Lundu “Eu gosto de Negra(o)”, ver:
VIANNA, Hildegardes. Um velho Lundu. Folclore, ano XIX, n° 85. Vitória: Comissão Espírito-santense de Folclore, Julho a Dezembro de 1968.
ABREU, Martha. “Sobre Mulatas Orgulhosas e Crioulos Atrevidos”: conflitos raciais, gênero e nação nas canções populares (Sudeste do Brasil, 1890-1920). Tempo, Rio de Janeiro, n° 16, 2004, pp. 143-173.

Uso e permissão

Permitida divulgação. Permitida utilização educacional. Não permitido uso comercial.